quarta-feira, 29 de abril de 2020

Novo coronavírus impõe batismo de fogo a governos e sistemas de saúde

João Oliveira Wenceslau Guimarães-BA



Apesar da perplexidade que varre o planeta desde o início de março, quando a covid-19 tornou-se uma emergência em quase todos os países, as autoridades de saúde já haviam sido alertadas em setembro do ano passado da possibilidade de uma pandemia por estudiosos reunidos em um programa de pesquisa da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos: o Índice Global de Segurança em Saúde, GHS Index, na sigla em Inglês. 

Esse, entretanto, foi o alerta mais recente. Doze anos antes, o risco de epidemias provocadas por coronavírus do tipo SARS-CoV, semelhante à que atingiu a China em 2003, havia sido detectado em estudos científicos. 

Já o risco de uma catástrofe global provocada por um vírus foi objeto de advertências posteriores, sendo a do então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, em 2014, e a de Bill Gates, dono da Microsoft, em 2015, as mais badaladas. 

Esses avisos, entretanto, não foram tomados com o grau de seriedade que mereciam, a não ser em correntes de público especializadas. 

O vírus era uma hipótese, sim, mas a magnitude do contágio, seus efeitos no organismo humano e as consequências para os sistemas de saúde não se desenharam nem nos piores pesadelos de governantes, profissionais de saúde e cidadãos comuns. No Brasil, houve tempo e cabeça até para brincar o carnaval deste ano antes que o vírus desembarcasse de vez, vindo da Europa. Muita gente estava em viagens de turismo pelo mundo, viajando de avião ou em idílicos cruzeiros. Quando a Itália começou a se configurar como um país em dificuldades, uma família brasileira confirmou a repórteres de TV que seguiria com seus planos de visitar o país, já que o pacote estava pago. 

Poderá — e muito provavelmente haverá — um tempo em que apareça uma doença que seja transmissível pelo ar e que será muito mortífera. Uma nova estirpe de gripe, como a gripe espanhola, em cinco ou dez anos. Numa era de globalização, em que as pessoas conseguem atravessar o mundo num dia, é essencial prepararmo-nos para uma coisa que sabemos que vai acontecer. Para lidar com isso de forma eficaz, precisamos criar infraestruturas, a nível global, que nos permitam identificar rapidamente o problema, isolá-lo rapidamente e dar uma resposta rápida. Esses são bons investimentos, investimentos inteligentes. — Barack Obama, em discurso no Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, em 2 de dezembro de 2014 

Se algo vier a matar 10 milhões de pessoas nas próximas décadas, é mais provável que seja um vírus altamente infeccioso, mais do que uma guerra. Não mísseis, mas micróbios. — Bill Gates, em palestra na Technology, Entertainment and Design (TED), empresa de disseminação de conhecimento em 3 de abril de 2015) 

Os alertas em torno de uma pandemia, primeiramente expressos em artigos científicos publicados em 2007 por cientistas chineses na revista da Sociedade Norte-americana de Microbiologia, evoluíram para a sistematização em farta produção acadêmica e passaram a fundamentar a estruturação de bancos de dados para medir a capacidade de resposta de administrações que vão dos superpoderosos Estados Unidos e China às modestas Libéria e Serra Leoa. 

Sabe-se que os coronavírus sofrem recombinação genética, o que pode levar a novos genótipos e surtos. A presença de um grande reservatório de vírus do tipo Sars-CoV em morcegos-ferradura, juntamente com a cultura de comer mamíferos exóticos no sul da China, é uma bomba-relógio. A possibilidade de reemergência da SARS e outros vírus novos de animais ou laboratórios e, portanto, a necessidade de preparação não deve ser ignorada. — Vincent Cheng, Susanna Lau, Patrick Woo, Kwok Yung Yuen, no artigo “Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave como Agente de Infecção Emergente e Reemergente”, publicado na revista da sociedade Americana de Microbiologia, em 2007. 

O Índice Global de Segurança em Saúde, elaborado pelo Centro de Segurança da Saúde da Johns Hopkins começou a se estruturar em 2017. É um pioneiro e abrangente levantamento junto a 195 países que se submetem ao Regulamento Sanitário Internacional (RSI), com o objetivo de estimular os governos e a iniciativa privada a melhorarem a capacidade internacional de resposta a surtos de doenças infecciosas que possam levar a epidemias e pandemias. 

“Como as doenças infecciosas não conhecem fronteiras, todos os países devem priorizar e exercer as capacidades necessárias para prevenir, detectar e responder rapidamente a emergências de saúde pública”, alertam os responsáveis pelo GHS em sua página. “Todo país também deve ser transparente sobre suas capacidades para garantir aos vizinhos que pode impedir que um surto se torne uma catástrofe internacional”. A tarefa se estende a líderes globais e organizações internacionais com “responsabilidade coletiva”. 

Exército realiza ações de desinfecção no aeroporto de Brasília (foto: Leopoldo Silva/Agência Senado) 
A ideia é que, ao se mirarem no espelho oferecido pelo GHS, países e organizações tenham uma medida do quanto fizeram e do quanto precisam fazer para não deixar que uma epidemia ganhe corpo em seus territórios e, também, para que não se alastre para outros países. O GHS inclui indicadores da capacidade de os países reduzirem o que os pesquisadores nomearam de Riscos Biológicos Catastróficos Globais (GCBRs, na sigla em inglês). São riscos biológicos de uma escala nunca vista antes, por causa da interconexão entre os países, o gigantismo da atividade humana, ao lado da devastação da natureza, da falta de ações adequadas no trato com animais selvagens e da manipulação intencional ou não de estruturas genéticas em laboratórios. 

“Os GBRs podem causar danos graves à civilização humana em nível global, minando o potencial de longo prazo da civilização. Estes são eventos que poderiam acabar com os ganhos no desenvolvimento sustentável e saúde global devido ao seu potencial de causar instabilidade regional, conseqüências econômicas globais e ampla morbimortalidade”, alertava o relatório da Johns Hopkins de setembro do ano passado, três meses antes, portanto, da divulgação dos primeiros casos da covid-19 na China. 

Não era uma predição, apesar do tom profético. Era o resultado de uma cuidadosa análise da situação mundial, mesmo que prejudicada pela inconsistência de dados enviados aos pesquisadores: “as consequências de tais eventos podem ser um desastre generalizado repentino, além da capacidade coletiva de governos nacionais e internacionais e do setor privado de controlá-la. 

Tais eventos podem levar a um grande sofrimento e perda de vidas. O dano sustentado aos governos nacionais, relações internacionais, economias, estabilidade social ou segurança global pode exacerbar ainda mais o efeito mortal — Relatório do GHS, setembro de 2019 

O relatório divulgado pelo organismo em setembro de 2019 trazia, junto com esses avisos, uma avaliação pouco favorável do quanto cada Estado nacional, separadamente, e todos, em conjunto, estavam prontos para enfrentar uma pandemia: “os países não estão preparados para um evento biológico globalmente catastrófico, incluindo aqueles que poderiam ser causados ​​pela disseminação internacional de um patógeno novo ou emergente ou pela liberação deliberada ou acidental de um agente perigoso ou de engenharia ou organismo”. 

De acordo com o relatório, a biossegurança, seja do ponto de vista sanitário, seja do ponto de vista do manejo científico em laboratórios, não é priorizada pelos governos quando têm de elaborar e executar políticas de segurança em saúde. Além disso, “as conexões entre os atores do setor de saúde e segurança na resposta a surtos são fracas”. Conforme os responsáveis pelo GHS, havia poucas evidências àquela altura de que a maioria dos países havia testado suas “capacidades de segurança em saúde ou demonstrado que elas funcionariam em uma crise”. 

Cinco meses depois, com o novo coronavírus fazendo estragos em vários continentes, já não havia dúvida de que os países estavam “testando suas capacidades” em verdadeiros batismos de fogo. E era evidente que, no atacado, a avaliação dos membros do GHS coincidia com a realidade. Com base nas conclusões desses estudiosos, percebe-se uma ambiguidade de sentido na frase “ninguém estava preparado”, bastante repetida atualmente. 

Na cidade italiana de Bolonha, bandeira do país em uma janela traz a inscrição "Tudo ficará bem" (foto: Pietro Luca Cassarino) 

A segurança nacional da saúde é fundamentalmente fraca em todo o mundo. Nenhum país está totalmente preparado para epidemias ou pandemias, e todos os países têm lacunas importantes para resolver — Relatório do GHS, setembro de 2019 

Os principais achados dos pesquisadores, a partir das informações enviadas pelos países indicavam, entre outros aspectos, que:


  • A pontuação média geral do GHS totalizava 40.2 de uma possível pontuação de 100
  • 116 países de renda alta e média não pontuavam acima de 50 
  • 92% dos países não mostravam evidências de exigir verificações de segurança para o pessoal com acesso a materiais ou toxinas biológicas perigosas 
  • 85% não mostravam evidências de terem concluído, no ano anterior, um exercício de simulação do Regulamento Sanitário Internacional (RSI) com foco em ameaças biológicas com a Organização Mundial da Saúde (OMS) 
  • Menos de 5% consideravam testar seu centro de operações de emergência pelo menos anualmente 
  • 89% não demonstravam ter um sistema para prover atendimento médico durante uma emergência de saúde pública 
  • Apenas 19% registravam pelo menos um epidemiologista de campo treinado por 200 mil pessoas 

Diante desse quadro, os especialistas do GHS fizeram uma série de recomendações, que, infelizmente, os países só terão condições de atender depois de vencerem a emergência da pandemia atual. A primeira delas é um comprometimento com a necessidade de enfrentar os riscos à segurança da saúde, por meio de uma política própria, transparente e medida com regularidade, com publicação de resultados pelo menos uma vez a cada dois anos.

Outro esforço deve ser o de melhorar a coordenação, especialmente no que diz respeito aos vínculos entre as autoridades de segurança e saúde pública. “Os países devem testar suas capacidades de segurança sanitária e publicar análises pós-ação, pelo menos anualmente”, diz o documento, que contém também uma formulação para ações em nível multilateral: um novo fundo global de segurança sanitária e a expansão das verbas da Associação Internacional de Desenvolvimento (AID), vinculada ao Banco Mundial.

“O secretário-geral da Organização das Nações Unidas [ONU] deve convocar uma cúpula em nível de chefes de Estado até 2021 sobre ameaças biológicas, incluindo um foco no financiamento e resposta a emergências”, orientava o GHS, agregando outra responsabilidade à ONU: a designação de uma unidade permanente para eventos biológicos de alto potencial danoso. Do setor privado, pedia-se que investisse uma porcentagem de seus portfólios de desenvolvimento sustentável e segurança da saúde na área de biossegurança.
Reunião de gestores de saúde do Irã com representantes da OMS em Teerã (foto: Hossein Velayati)
Caso as recomendações dos especialistas venham a ser implementadas, o mundo será bem mais seguro. Mas não está claro quando esse cenário virá, e se virá, assim como não está clara a estratégia viável de reconstrução da economia abalada pelo novo coronavírus, algo que influenciará, aliás, a reestruturação dos investimentos em saúde. 

Por enquanto, os países tentam, cada um à sua maneira, enfrentar a onda de contágio pelo vírus e dar atendimento médico aos infectados. E, em alguma medida, buscam avaliar no que erraram e no que acertaram. 

Era, afinal, possível terem agido de maneira tecnicamente mais adequada? Nesse sentido, um dos fatos mais lembrados é a demora de alguns países em determinar medidas de isolamento mais duras. A Itália teria nessa hesitação um dos fatores do grande número de mortos pela covid-19, assim como os Estados Unidos, cujo governo teria sido alertado dos riscos da pandemia por relatório secreto pouco antes de ela irromper. Ambos miraram a possibilidade de saírem relativamente ilesos da crise sanitária sem afetar por demais a atividade econômica. 

Muitos se referem àquele vídeo que circulava com o título #MilãoNãoPara. Era 27 de fevereiro, o vídeo estava explodindo nas redes, e todos o divulgaram, inclusive eu. Certo ou errado? Provavelmente errado. Ninguém ainda havia entendido a agressividade do vírus, e aquele era o espírito. Trabalho sete dias por semana para fazer minha parte, e aceito as críticas — Giuseppe Sala, prefeito de Milão, em 27 de março 

No Brasil, o dilema entre decretar o isolamento e manter atividades econômicas em funcionamento é uma das marcas da pandemia, especialmente por ter colocado em lados opostos o governo federal, contrário ao fechamento do comércio, os estados e os poderes Legislativo e Judiciário. Além do mais, o presidente Jair Bolsonaro em mais de uma ocasião divergiu publicamente do seu então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, médico ortopedista, e defendeu a livre circulação de pessoas. 

As avaliações do GHS levaram o contexto governamental em conta em uma categoria chamada “riscos políticos e de segurança”, na qual o Brasil obteve nota 71,4, em contraste com a média mundial de 60,4. Ou seja, avaliação que o GHS tinha do ambiente político no Brasil relacionado ao combate a uma epidemia era relativamente boa. E a razão é que o país não estava em guerra ou guerra civil e não havia turbulências que perturbassem de forma significativa a própria administração pública. Aparentemente, as informações recebidas pelos pesquisadores não indicaram que outros problemas de natureza política poderiam afetar a condução da saúde pública. 

No entendimento dos estudiosos, baixa confiança pública no governo afeta “a capacidade dos governos de retransmitirem mensagens eficazes durante crises biológicas”. Por essa razão, situações de conflito podem exacerbar epidemias e pandemias. Países em conflitos sérios, por exemplo, podem estar em maior risco de propagação descontrolada de doenças devido à maior probabilidade de seus sistemas de saúde serem fracos, com interrupções da rotina de atenção à saúde e de vacinação. 

O caso do Brasil, no que se refere ao seu ambiente político mostra que muitas vezes a discrepância entre como os países se viam, o que informavam ao GHS e o que a realidade da pandemia demonstrou podem levar a questionamentos sobre o retrato que foi traçado pelo índice, mas o próprio relatório observa que trabalhou com dados providos pelos próprios países. E que as informações nem sempre pareceram as mais precisas, obrigando a equipe a checagens e rechecagens.



Fonte: Agência Senado
Nelson Oliveira

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