domingo, 18 de outubro de 2020

O caso André do Rap e a complexidade do Direito

 João Oliveira, Wenceslau Guimarães - BAHIA

(Foto: Plenário do STF)



No dia 10 de outubro de 2020, decisão do ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal (STF), no Habeas Corpus (HC) n. 191.836/SP, colocou em liberdade André do Rap, condenado em primeira e segunda instâncias, a mais de dez anos de prisão, por tráfico internacional de drogas. Segundo a imprensa, André Oliveira Macedo é considerado um dos chefes do Primeiro Comando da Capital (PCC), facção criminosa que atua dentro e fora dos presídios de São Paulo, e acusado de gerenciar o envio de grandes remessas de cocaína à Europa. Ele foi preso em setembro de 2019.

A referida decisão aplicou o parágrafo único do art. 316 do Código de Processo Penal (CPP), incluído pela Lei n. 13. 964, de 2019. O artigo vigora com o seguinte formato:

Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. (Redação dada pela Lei n. 13.964, de 2019).

Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.
(Incluído pela Lei n. 13.964, de 2019)

Como era de se esperar, a decisão, a soltura e a posterior fuga do paciente (é assim que se denomina o beneficiário de HC) causou enorme celeuma na sociedade brasileira e, em particular, nos meios jurídicos. Pelo menos as seguintes questões jurídicas mais relevantes foram levantadas:

a) a ultrapassagem do prazo de 90 dias conduz à imediata soltura do acusado ou impõe somente a necessidade de revisão do ato pelo órgão judiciário competente;

b) a referida revisão cabe ao juiz que decretou a prisão preventiva ou ao órgão judiciário responsável pelo julgamento do processo no momento exigido por lei para a reanálise;

c) em qual momento se encerra a obrigatoriedade de revisão da decisão pela prisão preventiva (sentença de primeira instância, acórdão condenatório ou trânsito em julgado).

A atuação colegiada do STF, em decisão vinculante para toda a magistratura nacional, poderá e deverá por fim aos debates sobre os pontos levantados e outros tantos não explicitados. No julgamento da Suspensão de Liminar (SL) n. 1395, concluído no dia 15 de outubro de 2020, por maioria de votos o STF entendeu que a inobservância da revisão no prazo de 90 dias não implica a revogação automática da prisão preventiva. Nessas circunstâncias, o juízo competente deve ser provocado a reavaliar a legalidade e a atualidade dos fundamentos da restrição.

Observe-se que o parágrafo único do art. 316 do CPP impõe a revisão fundamentada e de ofício sob pena de tornar a prisão ilegal. Assim, a interpretação literal ou gramatical do dispositivo afasta, na primeira leitura, a provocação para a realização da reavaliação. Assim, a decisão do ministro Marco Aurélio deve ser considerada como uma das soluções juridicamente viáveis para a questão. Entretanto, não é a melhor ou mais adequada ante o contexto fático, os valores a serem considerados e outros textos normativos.

Portanto, esse caso particularmente agudo somente explicitou um conjunto de questões jurídicas de importância fundamental. Eis algumas delas:

a) o Direito não é matemática, não comporta aplicações “objetivas” ou “mecânicas” da “letra da lei”. Por consequência, o juiz não é um “autômato” ou mero artífice de uma subsunção onde a lei se encaixa (perfeitamente) ao caso concreto. Esse tipo de pensamento já se transformou em curioso objeto do museu da história do Direito;

b) não existe enunciado normativo que dispense interpretação-aplicação no âmbito de um intrincado processo (mental) informado pelas várias complexidades do tecido social subjacente;

c) não se aplica uma lei ou dispositivo legal isoladamente. O operador, na seara jurídica, aplica o Direito ou o ordenamento jurídico, considerando a totalidade de suas regras, princípios e valores consagrados. O novo Código de Processo Civil, Lei n. 13.105, de 2015, estabelece em seu art. 8o: "Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência". O art. 5o da antiga Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942) mencionava: “Na aplicação da lei ...”;

d) as finalidades das decisões do legislador e as consequências da decisão proferida devem ser consideradas (sem exagero ou exclusividade no uso desse critério). A Lei n. 13.655, de 25 de abril de 2018, alterou o Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), e, entre outras disposições, consignou: “Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão./Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”;

e) os contextos fáticos das decisões devem ser avaliados com especial cuidado. Afinal, os enunciados normativos são comandos gerais e abstratos e não conseguem contemplar, por óbvio, a riqueza das alternativas postas pela realidade. Certas peculiaridades ou contornos do caso em análise podem conformar várias formas diferentes de aplicação de uma disposição legal.

Não existe uma fórmula geral (método, algoritmo ou caminho) que indica como os três conjuntos fundamentais de elementos (contexto fático, enunciados normativos e valores) são utilizados na construção da solução jurídica para cada caso concreto. Subsiste uma infinidade de questões “internas” a serem consideradas em cada um dos três campos referidos. Ademais, são múltiplas e difíceis as relações entre os três elementos.

A complexidade do Direito e suas múltiplas interpretações-aplicações reflete a enorme complexidade da vida social que ele pretende regular de forma preventiva ou corretiva.







Fonte: https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/o-caso-andre-do-rap-e-a-complexidade-do-direito/

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